quinta-feira, 4 de março de 2010

Queda e ascensão de Amazonas


Até ao dia em que completou 18 anos, Amazonas viveu nos confins de uma aldeia alentejana na mesma casa onde nasceu. Fora o pai quem lhe dera o nome, fascinado pelo sonho de uma viagem que não viria a passar de mais uma quimera na sua vida. E com ela viu partir todas as suas ambições quando Amazonas entrou na universidade em Lisboa.
Em lágrimas, a mãe deu-lhe um último abraço após a longa viagem até à capital para deixar a filha na residência universitária. Assim viu os pais desaparecer no horizonte dessa rua no Lumiar, aspirando por um novo mundo cujo mistério ao mesmo tempo receava.
O primeiro dia na universidade foi talvez um dos mais estranhos da sua vida. Havia sido convocada para uma reunião pelo departamento do curso de Línguas, Literaturas e Culturas para atribuição de horários. Com alguma desconfiança, entrou no auditório onde decorreria a reunião e qual não foi o seu espanto quando, sentada entre os colegas, viu presidir à mesa de reuniões alunos pouco mais velhos que ela. No instante seguinte, não se recorda bem como, havia-se transformado na protagonista de um desfile com reles batas cinzentas que alegadamente deveriam ser usadas nas aulas práticas do curso. Por último, foi ainda coroada com umas orelhas de burro, aproveitadas de páginas de revistas pornográficas, e maquilhada com pinturas ainda mais ridículas.
De modo a não ultrajar os alunos, a secretária do departamento surgiu finalmente a informar sobre os tão aguardados horários, seguindo-se uma sessão de comes e bebes com professores que ainda ninguém conhecia. Amazonas aproveitou de imediato a ocasião para desaparecer sem que ninguém desse por isso.
Nos meses seguintes, Amazonas viria a fazer poucas ou nenhumas amizades. De facto, tornou-se um alvo fácil da chacota geral devido ao seu sotaque provinciano, pela sua forma saloia de vestir e, como se isso não fosse bastante, os colegas ainda aproveitavam a sua ajuda nos trabalhos e no estudo em proveito próprio. Manipulada por colegas e mesmo por professores que queriam moldá-la à imagem daquilo que não sabia se queria ser, começava a sentir-se esgotada de calar e constantemente ter de se proteger do exterior.
Refugiava-se no estudo, no cubículo de mundo que habitava, e era pelos seus excelentes resultados que se continuava a destacar no meio académico. Os pais nem sonhavam com o turbilhão que atravessava a sua vida, pois Amazonas não queria preocupá-los desnecessariamente.
No dia em que um colega plagiou um trabalho seu, alegando ser o autor do mesmo, Amazonas decidiu dar um basta em toda aquela situação. Quando chegou a casa, havia tomado a firme resolução de mudar a sua vida radicalmente daí para a frente. Estava pronta para a batalha. Não voltaria a ser a mesma menina ingénua e crente na natural bondade do ser humano. Havia sido educada num mundo que não se espelhava na realidade à sua volta, quase se sentindo traída pela educação que recebera. Mas esses dias de humilhação e desprezo haviam terminado. Agora seria ela a tomar o comando da sua vida. Uma nova era se avizinhava e, para o celebrar, esqueceu o sítio em que se encontrava. Colocou a música num som estridente, enquanto o fervilhar do grito de guerra dos Rage Against the Machine ressoava pelos corredores da residência:
- Fuck you, I won’t do what you tell me! Fuck you, I won’t do what you tell me!...
Uma desconhecida energia apoderara-se da outrora calma e paciente Amazonas. Começou a esvaziar o conteúdo do seu guarda-roupa até lhe sobrarem apenas umas poucas peças de vestuário pretas. Tudo o resto acabou amontoado num saco de viagem para doar à caridade. O passo seguinte foi a destruição do agora odioso quadro, pintado pela adorada avó, de uma fruteira de natureza morta onde se destacava uma banana madura. Apesar do valor sentimental, esse quadro que a acompanhara até Lisboa e adornava uma das paredes do seu quarto, fazia-a lembrar de como havia vindo a comportar-se como uma verdadeira banana. Passaria a utilizar o cérebro não apenas como ferramenta intelectual, mas como um aliado no caminho que se propunha trilhar.
Faltou uma semana às aulas. Quando regressou era olhada com desconfiança nas suas novas roupas escuras adequadas a um estilo sóbrio, quase sedutor, como um piscar de olhos. Não passou muito tempo que não a interrogassem sobre o porquê das suas constantes roupas pretas, ao que respondeu, com um esgar dissimuladamente trágico, e quase sem denotar os traços de sotaque que a distinguia entre os colegas:
- O meu namorado morreu num acidente de carro.
E mais não disse, perante olhares atónitos e vozes que teimavam em fazer-se mudas. Não tardou muito até a sua história se disseminar, despertando a atenção sobre a desconhecida vida de Amazonas e que afinal parecia ganhar novos contornos de interesse. Os colegas, sobretudo as raparigas, começaram a aproximar-se dela movidas pela curiosidade e tocadas pela sua tragédia. Pelo menos era o que diziam. Contudo, Amazonas não se importava minimamente se as suas intenções eram verdadeiras ou não. E foi assim que deixou alimentar uma série de aventuras que lhe começaram a ser atribuídas que originou todo um mito em torno da sua vida deixada para trás no Alentejo. Finalmente, atingira o seu primeiro objectivo - tinha-os nas suas mãos, ganhara a sua confiança e admiração. Agora só lhe faltava decidir o que fazer com eles daí para a frente. A sua vingança pessoal ainda mal começara.

SUSANA DUARTE MARTINS

1 comentário:

  1. Muito bom. Estou a adorar a Amazonas. O que acontecerá a este pequeno anjo selvagem? Quero saber...

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