quarta-feira, 10 de março de 2010

Luta pela Dignidade

exercício em discurso directo sobre um objecto
Há quem goste de pernas esguias, glúteos redondos ou seios arrebitados. Há mesmo quem tenha aquelas pancadas bizarras por pés pequenos ou orelhas redondinhas, ou ainda outros que se apaixonam por um piscar de olhos matador ou peculiares covinhas na bochecha. Eu, o que gosto mesmo é de me besuntar em voluptuosos lábios carnudos. Quanto mais redondos melhor, mais tenho o que explorar, o que invadir o que possuir. Lábios de mulher, homem ou mesmo daquelas aberrações metrosexuais, não faz diferença. Sejam eles carnudos e macios, aqui estou eu para os saborear, massajar, acarinhar e celebrar.

Meu pai Jacobs, ensinou-me desde tenra idade a descobrir a essência de uma boa boca. Mostrou-me a diversidade que a natureza tem para nos oferecer, e alertou-me para os erros que podemos cometer se pararmos em mãos erradas.

Numa madrugada, de rompante, já com ar meio gasto e esbatido, meu pai, destapou me e disse me:

- “Mark, se queres manter a linhagem da nossa família, dá te ao respeito. Ser um Jacobs é ser digno.”

Estas palavras acompanham me até hoje, dia após dia. Ser um Batom não é fácil. Todos os dias luto, para defender a minha imagem. Simplesmente abomino, quando olham para nós, e acham que somos um acessório rafeiro padecível de ser usado e abusado em ridículas máscaras de carnaval. Somos esborrachados nas caras rechonchudas de um e outro como se a ninguém pertencêssemos.

Quando chega o dia dos namorados, as mais ousadas, decidem usar-nos como uma caneta de feltro nas inúmeras surpresas que preparam para os seus queridos amantes, cartas, envelopes ou até mesmo carros. O meu pobre irmão nunca mais voltou a ser o mesmo, após um destes dias, em que Maria, uma adolescente em fase de explosão hormonal, decide tirar o pequeno Mike júnior da bolsinha perfumada de maquilhagem da mãe e com ele desenhar 30 corações no carro do seu jovem amado, que mais queria saber o que iam fazer no carro, e não propriamente como ele estava decorado.

Mas nem tudo é mau e desrespeitoso. Ser um baton de marca francesa e tom vermelhão, tem as suas vantagens. Sinto me de todo dignificado, numa daquelas “friend make-up sessions” pré noitada. Uma mão cheia de jovens espevitadas, que dispensam uma hora da sua noite no quarto de banho a “impiriquitarem-se”, para se sentirem belas e confiantes nos meandros da noite.
De mão em mão, de boca em boca sou desejado e requisitado, usado e abusado. Sinto me até um pouco ordinário, mas gosto…

Rita Madeira

Afluente



exercício das palavras obrigatórias


Dia 4: “parto em direcção ao afluente”, registou no gravador com o entusiasmo explosivo de quem parte à descoberta.
Talvez por inclemência do intenso calor húmido e dos trilhos agrestes, a pouca bagagem parecia-lhe agora excessivamente pesada, mas não podia excluir nada, nem sequer a última banana ou o pedaço de cana-de-açucar. O grupo seguia sob o comando do experiente guia, que marcava o passo amplo e confiante pela mata, sem sinais de mínimo esforço à excepção da pele negra cada vez mais reluzente do suor.
O plano da viagem tinha sido decidido três dias antes, em Ouro Preto.
Impressionado pela arquitectura colonial daquele município, deixou-se seduzir pela languidez da luz que deslizava pelos edifícios, perseguindo-a com a sua ferramenta de trabalho habitual, a sua reflex. Percorreu o terreno íngreme, até que parou na rua da Igreja do Carmo e de uma pequena bolsa retirou a fotografia em tons sépia da Casa da Ópera. Tinha sido tirada há mais de setenta anos pelo seu avô e agora aí estava, renascida, em milhares de pixeis coloridos no ecrã da sua máquina.
É fácil imaginá-lo aqui, na sua juventude – pensou, ao recordar o aroma intenso da colónia do avô, que parecia estar tão presente.
Da última vez que o viu olhou as suas mãos, de caminhos traçados, vividos e respondeu que sim ao seu pedido.
«Preciso que procures uma pessoa no Brasil», pediu o avô. «Tira da terceira gaveta o envelope selado, abre, lê e pensa no que aí está escrito».
Pensava que conhecia o seu avô, todas as suas histórias e percurso de vida, mas existia uma parte importante e inexplorada a desvendar.
Desta vez não partia apenas como repórter de uma história, mas sim da sua história.
Tinha à sua espera ameríndios, Portugueses, negros, índios e garimpeiros de ouro de aluvião. Uma amálgama para purificar num afluente do rio Amazonas.

Marisa Duarte

bem carnudos



Sou vermelho, mas passo a vida na escuridão.
Tenho um sonho. O meu sonho era andar de lábio em lábio. Daqueles bem carnudos. E nesses lábios vislumbrar esses flashes de luz vindos de uma caixa preta que alguém segura, enquanto vislumbra outros como eu. Dizem que são esses flashes de luzes que nos eternizam e eu queria ser eterno.
Sou quase eterno, mas sou esquecido. Vivo há anos esquecido na bolsa de alguém que esquece de mim e dos seus próprios lábios. Eu quero ser eterno, mas sentir-me útil. Quero publicitar, comunicar, embelezar e para isso preciso de lábios. Bem carnudos.
Sou quase eterno, mas mal amado. Passo dias e dias na escuridão desta bolsa. Tenho por companhia outros objectos quase tão esquecido quanto eu. São os meus melhores amigos. O blush, o rimel, a caneta, o isqueiro. O isqueiro, esse, tem outra sorte. Não só faz luz, como a vê com muita frequência. De cada vez que regressa conta-nos a todos as suas aventuras. Descreve o calor da mão que o segura. O cheiro do cigarro que acence. Por vezes, até, passa de mão em mão e descobre novos cheiros de outras marcas de tabaco. Juntamo-nos todos, agurdando ansiosamento, pelas suas estorias. Que caras viu e historias ouviu. E gostamos. E somos queridos entre nós. Mas eu quero mais, quero vida, quero paixão. E para isso, preciso de lábios. E bem carnudos.
Sou eterno, porque nunca fui usado. Eu quero, como todos os outros, ter princípio meio e fim. Sair deste início que não tem fim. Mas para isso, preciso de lábios. E bem carnudos.

Maria Elisa Baltazar

baton hardcore



Custa-me ser um baton. Não gosto, estou farto. As expectativas que depositam sobre mim são absurdas. Nunca a grande mão me puxa quando está tudo bem no mundo da luz. Não. É sempre para subir um patamar.

Ser um baton é hardcore. Só quando tudo falha é que sou chamado a intervir. Sou o "comando do saco". Normalmente à noite, vou lá acima faço o que tenho a fazer e desço rapidamente. É solitário. O gabarola do tabaco não me fala, o telemóvel passa a vida a tremer. Raramente vejo a luz do dia. É duro.

Chamam-nos “Os pintores”. A mim ao rímel e ao gloss - Esses bananas com quem partilho o fundo do saco. Por um lado é bom ser o bad-boy do saco, dá-me jeito. Ninguém me chateia. Estou-me a cagar para o porta-chaves sempre a tagarelar e a fazer piadas impróprias. Típico de quem tem de esconder a vida triste que leva a chiar em fechaduras e riscar os Mercedes dos gajos que “dividem a conta”.

Mas já não se mete muito comigo. Dei a dica à chave do correio e as outras aprenderam. É patética e não serve para nada desde que a grande mão trata de tudo no BES NET. Ferrugenta.
Ser um baton é hardcore.

Menos o do cieiro. Esse é maricas.

DIOGO BATÁGUAS

AFORISMOS AVULSOS

inpirados pelos seguintes temas: Inconsciente / Advogados / Comédia / Pacote:
Inconsciente é aquele que vai à Segurança Social às 9h da manhã. Já não há senhas.
Por que é que nos filmes os advogados, como as testemunhas, não juram também dizer a verdade e nada mais que a verdade?
Comédia é sair à chuva, ficar encharcado e rir-se disso.

Se rir é o melhor remédio por que é que não está a venda nas farmácias?
Espaço: supermercado. Hora: tanto faz. Por que é que os americanos levam no pacote e os portugueses no saco plástico?

Patrícia Tadeia
Gargalhada é espingarda em tempo de paz.
A vida deve brilhar. Nunca o mágico tirou o coelho de um pacote.
Homem sem braços tem pulso?

Carpinteiro ateu também prega?
Diogo Batáguas
Prefiro a inconsciência à verdade absoluta.
Emanuel Berenguel
Inconsciente: É a capacidade de pensar com todos os órgãos excepto o cérebro.

Advogados: Para se ser advogado é preciso ter a capacidade de argumentar as entrelinhas de um texto que não existe.

Comédia: É a gargalhada de um amputado quando lhe fazem cócegas nos pés.
Eliana Berenguel
Empacotar o empacotado é tempo desperdiçado.
Rita Madeira

BOCAS OCAS

SECA, MAIS UMA SECA. TANTA GENTE A RECLAMAR POR SER VÍTIMA DE BOCAS E EU AQUI PARADO, SEM TRABALHO, SÓ POR NÃO SER DE MARCA. GOSTAVA DE TER NASCIDO DONNA KAREN, ESSES BATONS SIM, FAZEM AS MADAMES DE HOLLYWOOD TODAS, ENQUANTO EU TENHO DE ME AJEITAR COM AS CORISTAS DE MEIA IDADE DO MAXIME E OS TRAVECOS ANUAIS DA GALA DO CASTRO. OS OUTROS STICKS – STICK É FINO, É COMO CARACÓIS EM FRANCÊS, “ESCARGOT” – VIAJAM GUARDADOS EM BOAS BOLSAS, LOUIS VUITON, GAULTIER, CHANNEL E EU PASMADO AQUI, ARRUMADO NUMA POCHETE QUE NÃO É MACHO NEM FÊMEA. NUNCA PENSEI CHEGAR A ESTE TAMANHO COM TÃO GRANDE CRISE DE IDENTIDADE, ATÉ A COR JÁ ME ESCORRE PARA O FUNDO. SINTO-ME PERDIDO, GOSTAVA DE TER UM ESPELHO ONDE ME REVER, UMA PINÇA COM QUEM FALAR, UM OB DO MEU TAMANHO ONDE ME ACONCHEGAR NUM CANTINHO DO CAMARIM EM NOITES DE ESPECTÁCULO.
EM VEZ DISSO, AQUI CONTINUO, PASMADO, OBJECTO DE ESTUDO DE MÉDICOS, ADVOGADOS, JORNALISTAS, BARMANS, PSICÓLOGAS E ATÉ DE UMA POSSÍVEL GENETICISTA MOLECULAR?! BEM, SE CALHAR TENHO MAIS FUTURO COM ESTA ÚLTIMA, TALVEZ UM DIA ME DESCUBRA O AVESSO DO ADN E ME TRANSFORME NOUTRA COISA QUALQUER.
É ISSO, VOU TENTAR UM BOCA-A-BOCA COM ELA E TRATAR DO MEU FUTURO, PARECE-ME SIMPÁTICA E APOSTO QUE TEM PINÇAS EM CASA.

Ricardo Vieira

cadeiras de 4 pernas e sem 'que'


Gosto da forma como as cadeiras têm 4 pernas. São raras as cadeiras com menos pernas. Acredito, por isso, ser importante valorizar o numero 4 quanto ao número de pernas envolvidas no processo de idealização de uma cadeira. 4 é bom.

Com 3 uma pessoa cai. Ou pode cair. Ainda se aleija. E ninguém deseja ver alguém dorido por ter caído de uma cadeira com 3 pernas. Isso deve ter sido pensado pelos senhores das cadeiras quando fizeram a primeira cadeira “Olha! Isso assim ainda aleija alguém, mete-lhe outra”, pensaram os senhores das cadeiras.

Há cadeiras com 5 pernas. Normalmente têm rodas. São cadeiras de 4 pernas batoteiras. Se é para meter rodas nas pernas das cadeiras, porque não nas de 4? Há uma desconsideração feia por parte dos senhores das cadeiras ao seu ganha pão… As cadeiras de 4 pernas. Anos e anos a encher a pança a vender cadeira de 4 pernas mas quando toca a inovar e a enfiar rodinhas no processo, são esquecidas as cadeiras de 4 pernas. Têm de ter 5 pernas. Está errado.

Vangloriam-se vaidosas as outras. Com 5 pernas. “Nós deslizamos até à impressora e vocês?”, e prosseguem “parecem uns troncos lololol”.

Este é um apelo. Sejamos todos pelas cadeiras de 4 pernas.
Obrigado.

Diogo Batáguas

sem 'que'



Subitamente passo de uma branca a uma transparente.
Ouço os pingos da chuva a bater intensamente nos teclados do computador. Chuva de ideias.
E eu, tábua rasa.
Faltam 5 minutos. Aumenta a pressão. Solto mais um furo do meu cinto das calças.
Agora sim. Vou começar a escrever.

Eliana Berenguel

declaração de amor insólita



… Merda!
Sentado no banco do jardim de Sto António à espera do autocarro teimosamente atrasado, lembrei-me de ti ao olhar para um pequeno mal-me-quer.
Não sei exactamente quando comecei a dizimá-los, um a um, claro, enquanto pensava em ti.
Desejava não ser verdade a velha crença popular das pétalas, pois só me saia bem-me-quer e muito, e eu não queria nada.
Casamos. A vida trouxe-te até mim, e eu ofereço-te todos os campos de bem-me-quer do mundo.

Emanuel Berenguel

INOCÊNCIO, O BRAVO

EXERCÍCIO DAS 5 PALAVRAS OBRIGATÓRIAS

Sempre foi das figuras mais marcantes na minha família, sempre no comando das operações, parecia uma personagem saída dos contos fantásticos, mal comparado, um esforçado cruzamento entre o comandante Nemo das 20.000 léguas submarinas e o capitão Iglo - das nossas filetes para preguiçosos – só que menos banana. O avô Inocêncio era um homem forte, garboso, como se dizia à época, um metro e oitenta e sete de porte de almirantado, cabelo de afogo em brilhantina e bigodes enrolados em pontas verticais, a acabarem em antenas de onda curta.
A sua paixão sempre foi o mar, por isso foi para a marinha, sempre gostou de oceanos alterosos, sem solução para Moisés de cunha metida, nada de rios de saltar a pulo ou riachos de patos mansos e sapos escondidos de princesas chatas. Sempre amou a gravidade das situações, “o limite do humano perante a natureza”, como gostava de dizer. Teve mais embalo no mar do que ao colo da mãe – era um menino de rua - como também gostava de lembrar, a confirmar a veterania. De três vezes perdeu o confronto com as forças naturais, afundou dentro de três barcos cansados, mas sempre alcançou terra à custa de uns braços fortificados de tanto girar a roda do leme. De duas das vezes, salvou companheiros, trazendo-os na largueza das suas costas e da sua bondade. Da terceira só lá ficou o cozinheiro com os tachos e a suspeita por parte dos outros sobreviventes da intenção do meu avô Inocêncio o ter deixado propositadamente a “refogar” em redemoinhos até alcançar o fundo. Parece que não gostava da comida a bordo.
No dia em que foi obrigado à reforma por limite de idade, fez a última anotação no seu diário de bordo, a lápis de molhar na língua e letra trémula. “Perante a natureza, um êxtase incomunicável, comovente, e o som dos meus ossos a encolherem-me até ao tamanho de um nada…Vivi.”

A partir desse dia morreu. Deixou de falar, de comer por si próprio, de enrolar as antenas, e o cabelo acordava e adormecia num ninho de galhos desencontrados.

À hora das refeições a história do ”Olha o avião..! Vruuuummmm!”, para o obrigar a comer
- ele a olhar desconfiado a colher da papa em voo picado, pilotada por pedaços de
bróculos e rodelas de cenouras, envoltos num puré a sobrar da colher, a pingar rodas imaginárias para a aterragem

não surtia efeito se não se substituísse a aeronave por um barco, nem que fosse a remos

- “Olha o barquinho..!” - e autorização imediatamente concedida para entrar no porto.
Mas à medida que a senilidade envelhecia deixaram de servir simples navios, a minha avó percorria toda a frota e os legumes passadinhos só encontravam o buraco da boca à custa de corvetas, contratorpedeiros e, por fim, já só de um valente porta-aviões gentilmente cedido pela marinha norte americana. A minha avó sabia então que o Inocêncio, o bravo amazonas, estava a gastar-se. Não havia barco a seguir, em breve só o reboque farronco para o levar à doca seca.

Na manhã do dia em que morreu, estávamos só os dois na sala, ele depositado no canto do sofá, braço de um no outro, inerte a par com o candeeiro – só que a dar muito menos luz - e eu furiosamente no zapping, à procura de surf. Assim que encontrei, depois de duas ondas valentemente dominadas por hawaiianos escorreitos, que o Inocêncio viu de olhos arregalados e pose recuperada, o meu avô levantou-se do sofá, abriu os braços em cima, em saca-rolhas moderno, chorou duas lágrimas, uma de cada lado da cara para se equilibrar, e proferiu as sua palavras finais:

- Obrigado, Pai, obrigado!

E finou-se desajeitadamente de volta ao sofá, ferramenta de volta à caixa.
Como se agradecesse uma promessa, uma dádiva a receber, uma carta de um filho que afinal não morreu na guerra, da mulher gorda que cala o berreiro no fim da ópera.

Não percebi até ao momento de o levar como adubo, mas no enterro, no momento em que a urna descia em direcção ao centro da terra, passou-me uma ideia, uma iluminação pela cabeça. O garboso do Inocêncio iria reencarnar rapidamente, desta vez na pele de um surfista, o safado! Por isso agradecia aos céus, a mulher gorda não pertencia à equação. Soltei uma gargalhada razoável no meio das duzentas pessoas que acompanhavam o baixar do velho lobo-do-mar.

O padre olhou-me de lado, já não me fala quando me vê na rua e a minha família nunca me perdoou, deixou de me convidar para enterros.

Ricardo Vieira

quinta-feira, 4 de março de 2010

Queda e ascensão de Amazonas


Até ao dia em que completou 18 anos, Amazonas viveu nos confins de uma aldeia alentejana na mesma casa onde nasceu. Fora o pai quem lhe dera o nome, fascinado pelo sonho de uma viagem que não viria a passar de mais uma quimera na sua vida. E com ela viu partir todas as suas ambições quando Amazonas entrou na universidade em Lisboa.
Em lágrimas, a mãe deu-lhe um último abraço após a longa viagem até à capital para deixar a filha na residência universitária. Assim viu os pais desaparecer no horizonte dessa rua no Lumiar, aspirando por um novo mundo cujo mistério ao mesmo tempo receava.
O primeiro dia na universidade foi talvez um dos mais estranhos da sua vida. Havia sido convocada para uma reunião pelo departamento do curso de Línguas, Literaturas e Culturas para atribuição de horários. Com alguma desconfiança, entrou no auditório onde decorreria a reunião e qual não foi o seu espanto quando, sentada entre os colegas, viu presidir à mesa de reuniões alunos pouco mais velhos que ela. No instante seguinte, não se recorda bem como, havia-se transformado na protagonista de um desfile com reles batas cinzentas que alegadamente deveriam ser usadas nas aulas práticas do curso. Por último, foi ainda coroada com umas orelhas de burro, aproveitadas de páginas de revistas pornográficas, e maquilhada com pinturas ainda mais ridículas.
De modo a não ultrajar os alunos, a secretária do departamento surgiu finalmente a informar sobre os tão aguardados horários, seguindo-se uma sessão de comes e bebes com professores que ainda ninguém conhecia. Amazonas aproveitou de imediato a ocasião para desaparecer sem que ninguém desse por isso.
Nos meses seguintes, Amazonas viria a fazer poucas ou nenhumas amizades. De facto, tornou-se um alvo fácil da chacota geral devido ao seu sotaque provinciano, pela sua forma saloia de vestir e, como se isso não fosse bastante, os colegas ainda aproveitavam a sua ajuda nos trabalhos e no estudo em proveito próprio. Manipulada por colegas e mesmo por professores que queriam moldá-la à imagem daquilo que não sabia se queria ser, começava a sentir-se esgotada de calar e constantemente ter de se proteger do exterior.
Refugiava-se no estudo, no cubículo de mundo que habitava, e era pelos seus excelentes resultados que se continuava a destacar no meio académico. Os pais nem sonhavam com o turbilhão que atravessava a sua vida, pois Amazonas não queria preocupá-los desnecessariamente.
No dia em que um colega plagiou um trabalho seu, alegando ser o autor do mesmo, Amazonas decidiu dar um basta em toda aquela situação. Quando chegou a casa, havia tomado a firme resolução de mudar a sua vida radicalmente daí para a frente. Estava pronta para a batalha. Não voltaria a ser a mesma menina ingénua e crente na natural bondade do ser humano. Havia sido educada num mundo que não se espelhava na realidade à sua volta, quase se sentindo traída pela educação que recebera. Mas esses dias de humilhação e desprezo haviam terminado. Agora seria ela a tomar o comando da sua vida. Uma nova era se avizinhava e, para o celebrar, esqueceu o sítio em que se encontrava. Colocou a música num som estridente, enquanto o fervilhar do grito de guerra dos Rage Against the Machine ressoava pelos corredores da residência:
- Fuck you, I won’t do what you tell me! Fuck you, I won’t do what you tell me!...
Uma desconhecida energia apoderara-se da outrora calma e paciente Amazonas. Começou a esvaziar o conteúdo do seu guarda-roupa até lhe sobrarem apenas umas poucas peças de vestuário pretas. Tudo o resto acabou amontoado num saco de viagem para doar à caridade. O passo seguinte foi a destruição do agora odioso quadro, pintado pela adorada avó, de uma fruteira de natureza morta onde se destacava uma banana madura. Apesar do valor sentimental, esse quadro que a acompanhara até Lisboa e adornava uma das paredes do seu quarto, fazia-a lembrar de como havia vindo a comportar-se como uma verdadeira banana. Passaria a utilizar o cérebro não apenas como ferramenta intelectual, mas como um aliado no caminho que se propunha trilhar.
Faltou uma semana às aulas. Quando regressou era olhada com desconfiança nas suas novas roupas escuras adequadas a um estilo sóbrio, quase sedutor, como um piscar de olhos. Não passou muito tempo que não a interrogassem sobre o porquê das suas constantes roupas pretas, ao que respondeu, com um esgar dissimuladamente trágico, e quase sem denotar os traços de sotaque que a distinguia entre os colegas:
- O meu namorado morreu num acidente de carro.
E mais não disse, perante olhares atónitos e vozes que teimavam em fazer-se mudas. Não tardou muito até a sua história se disseminar, despertando a atenção sobre a desconhecida vida de Amazonas e que afinal parecia ganhar novos contornos de interesse. Os colegas, sobretudo as raparigas, começaram a aproximar-se dela movidas pela curiosidade e tocadas pela sua tragédia. Pelo menos era o que diziam. Contudo, Amazonas não se importava minimamente se as suas intenções eram verdadeiras ou não. E foi assim que deixou alimentar uma série de aventuras que lhe começaram a ser atribuídas que originou todo um mito em torno da sua vida deixada para trás no Alentejo. Finalmente, atingira o seu primeiro objectivo - tinha-os nas suas mãos, ganhara a sua confiança e admiração. Agora só lhe faltava decidir o que fazer com eles daí para a frente. A sua vingança pessoal ainda mal começara.

SUSANA DUARTE MARTINS

O labrador da discórdia



O Miguel tinha um cão. Chamava-se Amazonas. A Joana tinha um peixe. Dava pelo nome de Trafaria. Era o seu mais que tudo. Durava já há 10 anos. Mas quem é que chama Trafaria a um animal de estimação? E mais. Quem é que tem um peixe como animal de estimação? Não tem memória. Não pede festas. Não pede comida - a não ser que ponhamos lá o dedo. Não ladra. Não mia. Não nos acorda com lambidelas. Não destrói a casa. Não mija nem caga pelo chão. Esperem aí. Este é o animal de estimação perfeito.
Adiante. Cada vez que ia à rua, o Amazonas ignorava os outros cães. Mesmo os mais pequenos que, mais ariscos, se chegavam a ele com um ladrar esganiçado. Um dia, enquanto passeavam pelo jardim, ao lado de casa, algo invulgar aconteceu. O labrador parou. Fez greve, não queria andar mais. O Miguel não percebia o que se passava e pôs-se a olhar para todo o lado.
Chegou-se mais para a esquerda e escorregou numa casca de banana. O tralho foi tal que toda a gente à sua volta não conseguia parar de rir. O próprio do Amazonas parecia esboçar um sorriso. (Ingrato.) Mas Miguel parecia ter o comando da situação. Agora, ambos imobilizados, olhavam para o fundo da rua. Joana surgia com o seu ar altivo e um aquário debaixo do braço. Miguel, ainda no chão fingia não ver aquela que amara desde que se mudara para o 2º esquerdo da Rua do Bom Nome, na Picheleira. Conheceram-se quando a dona do Trafaria lhe tocara à campainha de casa, há cerca de 9 meses. “- Olá vizinho, tem uma chave de fendas que me empreste? – pediu Joana, com um leve sorriso – É que tenho um armário para montar e a que veio com a caixa não serve… Incompetentes.” Miguel ficou mudo. Joana retorquiu.”Mas está tudo bem?” Era amor à primeira vista. Então Miguel foi buscar a ferramenta, e ofereceu-se para a ajudar com o trabalho.
Apaixonaram-se e meses depois já se tinha mudado para o 2º direito, a casa da Joana. O Amazonas adorava a nova casa. Até estava menos tímido. Mais dado. Dormia sempre encostado à nova dona. Mas, e como há sempre um mas, um dia o labrador estava sozinho em casa, apenas com o Trafaria como companhia. Miguel tinha-se esquecido de lhe deixar ração. Um encontrão no móvel derrubou o aquário. O Trafaria estava ali no chão aos saltinhos. O Amazonas tinha que fazer alguma coisa para o ajudar. Comeu-o. O Miguel e a Joana separaram-se. A Joana comprou outro peixe. E o Miguel chora todas as noites, incessantemente. Porquê? Adorava sushi e agora não consegue ir ao seu restaurante preferido sem derramar um mar de lágrimas.
Moral da história: Verifique sempre se os móveis que compra trazem as ferramentas necessárias à sua montagem.


Patrícia Tadeia

EXERCÍCIOS DAS PALAVRAS OBRIGATÓRIAS

5: comando, banana, ferramenta, rua, amazonas.
A primeira vez que mo disseram foi no meu quinto ou sexto aniversário.

Depois disso, ouvi nos natais e no autocarro, ouvi no supermercado e ao telefone. Há uns anos, medindo-me o rosto, a minha mãe sentenciou definitivamente as semelhanças e mostrou-me uma fotografia que me pareceu ser minha, mas numa selva em que nunca tinha entrado.

Ontem foi numa bomba de gasolina.

O Alberto era um vizinho do meu pai desde os tempos de Luanda, onde toda a minha família cresceu. Já em Portugal, viriam a comprar casa na mesma rua, onde trocavam necessidades de viúvo e divorciado, como uma ferramenta ou congelados.
O que é que faz por aqui? - perguntou o Alberto, caminhando na minha direcção.
Vim dar uma volta. E o senhor, como está?
Redobrando a atenção, o velho Alberto estudou o interior do meu carro e apontou para o que abastecia ao lado.
O meu filho convidou-me para vir dar uma volta.
Fez muito bem, passear com a família.
É, parece que sim. Mas já estamos a voltar.
Ora essa, daqui até Lisboa ainda é um bocado.
Mais que tempo para o meu filho me pedir dinheiro emprestado.
O meu sorriso ampliou-lhe o ânimo.
Chegou a conhecer o seu bisavô?
Não, nunca.
É a cara chapada dele.
Pois, já ouvi dizer.
Mais de mil vezes, pensei.
Acredite que é verdade. Uma pessoa muito engraçada, o seu bisavô. Lá em Luanda, andava todo arranjado, com um chapéu colonial... Cheguei a ter alguns livros dele, nem sei o que lhes fiz. A certa altura encomendaram-lhe uma obra sobre o Paiva Couceiro. Acho que aquilo deve ter dado a volta à cabeça ao seu bisavô e ele começou a ficar parecido com o homem. Rapaz, estou-lhe a falar a sério. Deixou crescer um bigode e depois enrolou-o com todo o cuidado...
Calou-se e fez um esgar sério, como se a memória o tivesse atropelado e retomasse agora o comando das palavras para recordar calado.

O rio Congo tem o segundo maior caudal de todo o mundo, a seguir ao Amazonas. Numa manhã de Verão, o meu bisavô deixou a mulher e os filhos em casa e lançou-se com dois amigos numa viagem que tinha como destino a foz daquele rio. Quarenta dias mais tarde, acampavam na bacia do rio Congo quando o extravagante embigodado disse que ia dar uma volta até à hora de almoço. Foi a última vez que foi visto.
Um dos homens que participavam na expedição disse à minha bisavó, depois de um luto simbólico, que “tinha sido melhor para todos”. Em Angola surgiram rumores mistificados de uma tribo liderada por um velho português que habitava na bacia do Congo. Em Trás-os-Montes, onde o meu bisavô nascera quarenta anos antes, celebrou-se o poeta, recordou-se o historiador, bebeu-se vinho.

Estaria detido nesta memória quando o filho do Alberto apareceu e disse que tinha de ir pagar a gasolina. O meu telemóvel começou a piscar. Olhei para as roupas, os livros e uma casca de banana espalhados pelo banco de trás do meu carro. Patético, em três dias de fuga ainda não conseguira furar o perímetro da cidade. Pensei no meu bisavô na selva congolesa, uma réplica solitária de um militar nacionalista a definhar em silêncio. Pensei na M., que me ligava insistentemente. Pensei no Alberto, que entretanto estendia um maço de notas ao filho, em agradecimento por uma tarde longe de Benfica.

Pedro Pinho

A incrível história do comando Banana



1990. Chove torrencialmente. Um grupo de soldados nus estão debaixo da chuva. À frente destes encontra-se um soldado notavelmente menos bem constituído, sentado numa cadeira também à chuva, a comer bananas consecutivamente, enfiando uma atrás da outra, na boca. No uniforme deste, pode ler-se um nome Silva, por detrás de um risco cosido. Em baixo do nome, surge escrito também cosido, Banana. Ouve-se um apito e um superior manda os soldados regressarem aos seus aposentos. Todos, menos o Banana. Este continua à chuva, sentado, a descascar e a comer banana atrás de banana.
2010.Banana está a dormir. Um despertador toca. Banana levanta-se, como se já estivesse acordado e em piloto automático dirige-se para o duche, onde se ouve a água a começar a correr. O seu quarto está desarrumado, como se não fosse limpo há meses. Na parede está uma boina de comando emoldurada e em baixo desta pode-se ler uma inscrição. – “Parabéns ao comando mais castigado desta corporação” Coronel Paciência.”
Banana está na cozinha. A mesa do pequeno-almoço está uma bagunça, parece a loiça toda de um batalhão, mas apenas se encontra por lá uma cadeira. Os pratos estão cheios de restos de comida. Inteiro, só resta um antigo cacho de bananas apodrecido nos últimos meses/anos. Banana nunca gostou de bananas, mas por uma razão ou por outra, esse foi o nome dado por todos ao longo da sua vida. Banana procura por uma tigela no armário, mas já não existem lavadas. Desiste de procurar e não lhe apetece lavar loiça. Senta-se à mesa e tenta ligar a televisão, o comando de televisão tem os botões todos novos e bem pintados, excepto o Butão de mudar de canal. Este está completamente gasto e até faz uma covinha da forma de um dedo. Banana tenta mudar de canal, mas a televisão não responde, mesmo depois de toda a força deste, para carregar no Botão, ou mesmo depois das várias posições, dadas por este ao comando, para o fazer funcionar.
Na rua, Banana caminha já vestido com o seu uniforme verde. Verde, sempre foi uma cor de sorte para ele. Desde os tempos de tropa, Banana vestir outra cor nunca lhe garantiu felicidade. Após ter sido obrigado a tornar-se reserva do exército (Os superiores diziam – Vai poupando forças em casa, para no caso de acontecer uma guerra, estares bem descansado.), Banana arranjou trabalho como repositor numa Worten e como electricista numa qualquer empresa privada. Em qualquer um dos casos, as fardas vermelhas e azuis, fizeram despedimento inevitável. - Estas cores desconcentram-me. Disse ele aos amigos, por mais de uma vez. Foi então, novamente com uniforme verde, que Banana voltou a encontrar relativa felicidade. (Relativa porque não acredita estar a usufruir das totais capacidades que aprendeu enquanto se formou nos Comandos.) Trabalha nos armazéns do AKI e tem como chefe um ex general do exército, o General Condescendência. À primeira vista, não existe razão para Banana ser feliz neste emprego, mas a função dada pelo ex coronel, permitiu-lhe usar algumas das técnicas aprendidas no exército. Banana é o responsável pela organização do material dentro do armazém, e também o responsável por um dos empilhadores.
É na organização de material onde Banana sente brio e responsabilidade no seu trabalho. Em vez de organizar o material, tal como todos os outros armazéns, Banana escolhe formações militares e armazena o material nessas mesmas formações. Por várias vezes o material esteve em formação de quadrado, losango ou diamante, caranguejo, entre outras. Mas se houve uma formação a qual Banana considerou a sua obra-prima, essa foi a posição Amazonas. No exército, Banana ouviu o mito da formação criada pelo povo protector da floresta Amazónia. Estes, para proteger a floresta, criavam “labirintos naturais” fazendo os adversários desnortear-se e tornarem-se mais fracos, no momento da batalha. O mesmo aconteceu no AKI e pela primeira vez, um adulto, teve de pedir ajuda pelas colunas do armazém e loja, para ser salvo.
Esgotadas as ideias de organização do material, resta o empilhador para Banana se distrair no seu trabalho. Banana cria constantemente jogos e objectivos para não se fartar do trabalho e hoje não é excepção. Com o trabalho todo feito, já nos dias anteriores, Banana decide pôr à prova a sua ferramenta de trabalho. Decide testar a força dos braços do seu empilhador. Para isso começa com apenas 20 paletes. Acção fácil para a sua máquina. Decide então aumentar o número de carga. Trinta, quarenta, cinquenta, sessenta. Neste momento a pilha de paletes é praticamente da altura do armazém, parecendo uma torre de pisa, prestes a ceder para qualquer um dos lados possíveis. Banana decide então colocar mais dez paletes no topo da torre. O empilhador consegue levantar. Banana rejubila com o feito, mas, a meio do percurso, Banana sente os braços da empilhadora a começar a ceder. Tenta, com a força humana, puxar a alavanca responsável pelos braços da empilhadora, para cima, até ouvir o som CRACK seguido de um estrondo enorme. Na loja, todos ouvem o estrondo e viram a cabeça para a proveniência do som. A escuridão propaga-se no armazém e passa até à loja. Esta escuridão não dura mais de um segundo. A luz volta aos dois sítios, e por detrás do pó lançado pela queda das paletes está Banana, com a alavanca na mão e a tentar colocá-la no sítio onde esta saiu. Missão na qual, não é bem sucedido.
Um outro empilhador surge por detrás do de Banana. Nele está Martelo, um colega de profissão de Banana. Não são nem amigos, nem conhecidos. Só sabe o nome dele devido aos mitos surgidos de dentro do armazém, sobre o tamanho da sua ferramenta e sobre a sua pessoa, que ao que parece, nunca ninguém viu. Mesmo a história da ferramenta parece ser um mito, pois nunca foi vista por ninguém conhecido e não se sabe até onde, pode haver uma dualidade no significado da palavra ferramenta. Mas neste momento isso não interessava para Banana, o arranjo do empilhador era o seu objectivo primordial. Martelo explica a Banana o usual do sucedido, o mesmo já lhe acontecera e só com um adaptador especial, é possível consertar a alavanca, este adaptador apenas se encontra numa loja da rua das Amazonas.
A rua das amazonas, para quem não sabe, é provavelmente a rua com mais má fama da cidade de Lisboa. A amazonas ganhou esse nome pela quantidade de meninas selvagens existentes por lá, e pela agressividade com a qual abordam os clientes. De noite ainda é mais sinistra, contrastando com a realidade de dia. Conta-se, o motivo da remoção dos postes de iluminação da rua se deveu ao constante balançar das amazonas com cordas, como se de lianas se tratassem, neste mesmos postes, para tornar a abordagem aos “clientes” ainda mais agressiva. Na TimeOut XXX lê-se a seguinte afirmação – “O Cais do Sodré é uma EuroDisney, comparada com a promiscuidade existente na Rua Amazonas.”
Banana nunca teve sucesso com o sexo oposto e nem na Rua amazonas teve sucesso. Onde todos os dias existia uma rede de prostituição enorme, por Banana se dirigir à tal rua, esta está deserta. A fama de Banana precedia-o, nem as amazonas o queriam. Banana percorre a rua de cima a baixo, mas não encontra a tal loja. Passa para o lado contrário da rua e nem uma loja de ferramentas. Confuso, Banana decide voltar ao armazém.
Ao chegar ao seu posto de trabalho, para sua surpresa, o empilhador estava já arranjado. – Só pode ter sido o martelo. Pensa o Banana. Decide então ir à procura do Martelo. Tal como a loja de ferramentas na rua amazonas, o Martelo não está em lado nenhum. Banana decide perguntar a colegas se alguém o viu. Motivo de gozo para os colegas de Banana. Nunca ninguém viu o Martelo e até se diz nunca ter existido. Banana tenta contrariá-los, mas Banana não tem credibilidade para ninguém.
Dá-se o toque de saída do armazém. Banana espera por todos saírem e nem sinal do Martelo. – Ele só pode estar lá dentro. Banana tenta voltar para dentro do armazém, mas é impedido por um segurança. – Trabalhadores saem às cinco. Responde o segurança. Banana tenta convencê-lo, mas nada feito. Restava-lhe o resto do dia de folga e só no dia seguinte poderia voltar à fábrica. Banana resignado, volta para casa, mas decide investigar e usar todos os meios e artifícios há sua disposição, para descobrir quem, ou o que é o Martelo.

(CONTINUA)

Diogo Abrantes

O que queremos afinal?



Numa daquelas tardes de domingo em que tudo parece errado e estupidamente angustiante, vento a assobiar na janela, a criança do andar de cima a chorar há quase uma hora, zapping entediante e compulsivo por mais de 60 canais estrangeiros e o único programa que serve de ocupação é o espezinhar dos inúmeros processos judiciais do primeiro ministro, Matilde, ainda de pijama as 3h da tarde, decide: “Não quero mais isto”.

Esta não era a primeira vez que Matilde reestruturava a sua vida em menos de 2h. Entre taça de cereais com yogurte de banana e cigarrinho de ervinhas ditas ilícitas, Matilde deambulava pela casa com um bloco de notas na mão a tentar perceber o que queria da sua vida. Com uma linha meio torta e tremida, dividiu a folha ao meio. De um lado tentava enumerar os “O que eu quero”, do outro, numa lista bem mais completa vê-se os “O que eu não quero”.

Matilde não queria pois, tudo o que já tinha feito, ou imaginava imediato fazer. Dotada de curiosidade inata, a jovem de cabelos compridos, já tinha experimentado diversas actividades e ocupações. Curso de matemáticas aplicadas, numa época em que acreditava num futuro socialmente bem aceite e credível, cursos de árabe intensivo quando o seu fascínio passava pela compreensão e aproximação de povos emergentes, formações de teatro inacabadas, barmaid em tempos de constante diversão fora de horas, ou mesmo organização de eventos, fazem parte do seu currículo.

Este era um daqueles dias de viragem. Tinha passado os últimos seis meses a trabalhar numa consultora, na área de prospecção de mercado para não dizer vendas. No início parecia interessante e empresarialmente estimulante, mas com o passar do tempo cada vez mais sentia que tentava convencer as pessoas de que precisavam de algo, que nem elas próprias tinham ainda reparado.

Matilde queria incondicionalmente viver sem pensar no que é certo ou errado, aceite ou discriminado. Decidida, pintou a florescente 3 tópicos da sua lista, e abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira, onde há muito guardava um pequeno anúncio onde se lia num luso brasileiro meio estranho “Procura-se professora de surf que saiba e ensine inglês e com bom astral para dar aula iniciação às mininas piquenas no escola OndaAmazonas. O programa ecosurf promete formação de yoga, casa, alimentação e salário 300 reais”.

Parecia quase perfeito. Surf era amador mas para ensinar iniciação deve dar, inglês tranquilo, yoga o sonho e o capricho. Matilde também passara por umas aulas de yoga, que apesar das colegas serem na média acima dos 50 anos, sempre deu para ficar com uma pequena noção de como precisaria de treinar as articulações para estar à altura dos yogistas de verdade. Aqueles sempre com um ar leve, elástico, relaxado e saudável. O pagamento, uma miséria de 124 €, mais ou menos disfarçada em reais. Também não é para ganhar dinheiro, afinal até tinha juntado uma boa quantia, após trabalho aqui e ali. Uns até boas experiências, apesar de efémeras. É o caso, do estágio no jornal, depois de um artigo científico da faculdade que até saiu bem, ou mesmo a consultora de gestão.

Já há dois anos guardava o papel amarrotado, panfleto que tirara de uma lojinha qualquer de praia, perto da rua principal de Sagres. Ligou para o número lá indicado. Após 3 tentativas, do outro lado da linha atendeu, uma voz com um tom misto entre esganiçado e tranquilo. Era de uma Minina dos seus 25 anos, a julgar pela conversa. Perguntas e mais perguntas, e por acaso até precisavam de alguém para ocupar o lugar da Amanda que estava prestes a dar à luz. Melhor, a escola pertencia à federação de Surf Brasileiro, e preferiam professoras estrangeiras. Pelo menos assim tinha um ar mais credível.

Parecia muito daquelas cenas que só se vêem nos filmes, mas também porque não?! Também houve há pouco tempo o anúncio que correu os 6 Continentes “O melhor trabalho do Mundo” e era real. Estas coisas às vezes existem. Tem de ser mais fácil do que parece. Estava decidida, uma temporada ainda meio incerta algures numa praia amazonas, era o próximo destino.

Pega no comando da tv, abre na Sic noticias, e de repente a decisão parece outra vez ridícula e absurda. Mas desta vez, Matilde tratou de parar de pensar, e marcou a passagem.

Uma semana depois, aterrava de havaiana no pé, e excesso de bagagem, em terras brasileiras. Em Pororoca, praia da OndaAmazonas, parecia tudo mais que perfeito. O trabalho fazia parte de uma iniciativa da ONG mais próxima, que tentava educar as crianças, com o que tinham ao seu alcance, mar e comunicação. Praia, ondas, Sol, crianças divertidas, pessoas descontraídas, porém às vezes até de mais, e poder ser útil para alguém que quer e precisa, era a combinação ideal.

Os dias passavam e cada vez mais, Matilde se ambientava à nova casa. Palhota no meio do pinhal, perto da pequena vila, junto à praia. O yoga, vá era uma vez por semana, pois de caridade o professor não era assim tão assíduo. Mas umas monitoras antigas, já conseguiam ensinar os exercícios habituais. O trabalho com as crianças era o que mais compensava. O que a terra dá chegava bem para serem felizes.

Passado 4 meses, Matilde já de pele encardida, e cabelo queimado, sentia-se bem onde estava, mas começava a sentir falta de ir à Internet, consultar o facebook como ferramenta social, ir ao cinema ver o último filme de Woody Allen, ir às compras com a mãe, e apesar de satisfeita com um que contribuía e aprendia, sentia falta de outros ideias, objectivos e conquistas. Pensava que queria trabalhar por algo mais produtivo para o seu país, algo mais próximo do que tinha estudado tantos anos. Pensava que agora, o mestrado tinha ficado para trás, e que talvez não pudesse ser.

Numa noite quente de domingo ao luar, deitada na rede da palhota, ao som da guitarra desafinada de Malu, a sua colega e já companheira de programa ecosurf , Matilde está como está de novo pensativa e inquieta, desta vez num cenário paradisíaco, onde as preocupações parecem não ter lugar. De cigarrinho “que faz rir” na mão e bloco de notas na outra, volta a abrir a folha dividida. As células das colunas agora unem-se como se do Excel se tratasse, e agora existe uma coluna que diz apenas, mas afinal “O que é que eu quero?”.

Rita Madeira