quinta-feira, 4 de março de 2010

O que queremos afinal?



Numa daquelas tardes de domingo em que tudo parece errado e estupidamente angustiante, vento a assobiar na janela, a criança do andar de cima a chorar há quase uma hora, zapping entediante e compulsivo por mais de 60 canais estrangeiros e o único programa que serve de ocupação é o espezinhar dos inúmeros processos judiciais do primeiro ministro, Matilde, ainda de pijama as 3h da tarde, decide: “Não quero mais isto”.

Esta não era a primeira vez que Matilde reestruturava a sua vida em menos de 2h. Entre taça de cereais com yogurte de banana e cigarrinho de ervinhas ditas ilícitas, Matilde deambulava pela casa com um bloco de notas na mão a tentar perceber o que queria da sua vida. Com uma linha meio torta e tremida, dividiu a folha ao meio. De um lado tentava enumerar os “O que eu quero”, do outro, numa lista bem mais completa vê-se os “O que eu não quero”.

Matilde não queria pois, tudo o que já tinha feito, ou imaginava imediato fazer. Dotada de curiosidade inata, a jovem de cabelos compridos, já tinha experimentado diversas actividades e ocupações. Curso de matemáticas aplicadas, numa época em que acreditava num futuro socialmente bem aceite e credível, cursos de árabe intensivo quando o seu fascínio passava pela compreensão e aproximação de povos emergentes, formações de teatro inacabadas, barmaid em tempos de constante diversão fora de horas, ou mesmo organização de eventos, fazem parte do seu currículo.

Este era um daqueles dias de viragem. Tinha passado os últimos seis meses a trabalhar numa consultora, na área de prospecção de mercado para não dizer vendas. No início parecia interessante e empresarialmente estimulante, mas com o passar do tempo cada vez mais sentia que tentava convencer as pessoas de que precisavam de algo, que nem elas próprias tinham ainda reparado.

Matilde queria incondicionalmente viver sem pensar no que é certo ou errado, aceite ou discriminado. Decidida, pintou a florescente 3 tópicos da sua lista, e abriu a gaveta da mesa-de-cabeceira, onde há muito guardava um pequeno anúncio onde se lia num luso brasileiro meio estranho “Procura-se professora de surf que saiba e ensine inglês e com bom astral para dar aula iniciação às mininas piquenas no escola OndaAmazonas. O programa ecosurf promete formação de yoga, casa, alimentação e salário 300 reais”.

Parecia quase perfeito. Surf era amador mas para ensinar iniciação deve dar, inglês tranquilo, yoga o sonho e o capricho. Matilde também passara por umas aulas de yoga, que apesar das colegas serem na média acima dos 50 anos, sempre deu para ficar com uma pequena noção de como precisaria de treinar as articulações para estar à altura dos yogistas de verdade. Aqueles sempre com um ar leve, elástico, relaxado e saudável. O pagamento, uma miséria de 124 €, mais ou menos disfarçada em reais. Também não é para ganhar dinheiro, afinal até tinha juntado uma boa quantia, após trabalho aqui e ali. Uns até boas experiências, apesar de efémeras. É o caso, do estágio no jornal, depois de um artigo científico da faculdade que até saiu bem, ou mesmo a consultora de gestão.

Já há dois anos guardava o papel amarrotado, panfleto que tirara de uma lojinha qualquer de praia, perto da rua principal de Sagres. Ligou para o número lá indicado. Após 3 tentativas, do outro lado da linha atendeu, uma voz com um tom misto entre esganiçado e tranquilo. Era de uma Minina dos seus 25 anos, a julgar pela conversa. Perguntas e mais perguntas, e por acaso até precisavam de alguém para ocupar o lugar da Amanda que estava prestes a dar à luz. Melhor, a escola pertencia à federação de Surf Brasileiro, e preferiam professoras estrangeiras. Pelo menos assim tinha um ar mais credível.

Parecia muito daquelas cenas que só se vêem nos filmes, mas também porque não?! Também houve há pouco tempo o anúncio que correu os 6 Continentes “O melhor trabalho do Mundo” e era real. Estas coisas às vezes existem. Tem de ser mais fácil do que parece. Estava decidida, uma temporada ainda meio incerta algures numa praia amazonas, era o próximo destino.

Pega no comando da tv, abre na Sic noticias, e de repente a decisão parece outra vez ridícula e absurda. Mas desta vez, Matilde tratou de parar de pensar, e marcou a passagem.

Uma semana depois, aterrava de havaiana no pé, e excesso de bagagem, em terras brasileiras. Em Pororoca, praia da OndaAmazonas, parecia tudo mais que perfeito. O trabalho fazia parte de uma iniciativa da ONG mais próxima, que tentava educar as crianças, com o que tinham ao seu alcance, mar e comunicação. Praia, ondas, Sol, crianças divertidas, pessoas descontraídas, porém às vezes até de mais, e poder ser útil para alguém que quer e precisa, era a combinação ideal.

Os dias passavam e cada vez mais, Matilde se ambientava à nova casa. Palhota no meio do pinhal, perto da pequena vila, junto à praia. O yoga, vá era uma vez por semana, pois de caridade o professor não era assim tão assíduo. Mas umas monitoras antigas, já conseguiam ensinar os exercícios habituais. O trabalho com as crianças era o que mais compensava. O que a terra dá chegava bem para serem felizes.

Passado 4 meses, Matilde já de pele encardida, e cabelo queimado, sentia-se bem onde estava, mas começava a sentir falta de ir à Internet, consultar o facebook como ferramenta social, ir ao cinema ver o último filme de Woody Allen, ir às compras com a mãe, e apesar de satisfeita com um que contribuía e aprendia, sentia falta de outros ideias, objectivos e conquistas. Pensava que queria trabalhar por algo mais produtivo para o seu país, algo mais próximo do que tinha estudado tantos anos. Pensava que agora, o mestrado tinha ficado para trás, e que talvez não pudesse ser.

Numa noite quente de domingo ao luar, deitada na rede da palhota, ao som da guitarra desafinada de Malu, a sua colega e já companheira de programa ecosurf , Matilde está como está de novo pensativa e inquieta, desta vez num cenário paradisíaco, onde as preocupações parecem não ter lugar. De cigarrinho “que faz rir” na mão e bloco de notas na outra, volta a abrir a folha dividida. As células das colunas agora unem-se como se do Excel se tratasse, e agora existe uma coluna que diz apenas, mas afinal “O que é que eu quero?”.

Rita Madeira

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