quinta-feira, 4 de março de 2010

EXERCÍCIOS DAS PALAVRAS OBRIGATÓRIAS

5: comando, banana, ferramenta, rua, amazonas.
A primeira vez que mo disseram foi no meu quinto ou sexto aniversário.

Depois disso, ouvi nos natais e no autocarro, ouvi no supermercado e ao telefone. Há uns anos, medindo-me o rosto, a minha mãe sentenciou definitivamente as semelhanças e mostrou-me uma fotografia que me pareceu ser minha, mas numa selva em que nunca tinha entrado.

Ontem foi numa bomba de gasolina.

O Alberto era um vizinho do meu pai desde os tempos de Luanda, onde toda a minha família cresceu. Já em Portugal, viriam a comprar casa na mesma rua, onde trocavam necessidades de viúvo e divorciado, como uma ferramenta ou congelados.
O que é que faz por aqui? - perguntou o Alberto, caminhando na minha direcção.
Vim dar uma volta. E o senhor, como está?
Redobrando a atenção, o velho Alberto estudou o interior do meu carro e apontou para o que abastecia ao lado.
O meu filho convidou-me para vir dar uma volta.
Fez muito bem, passear com a família.
É, parece que sim. Mas já estamos a voltar.
Ora essa, daqui até Lisboa ainda é um bocado.
Mais que tempo para o meu filho me pedir dinheiro emprestado.
O meu sorriso ampliou-lhe o ânimo.
Chegou a conhecer o seu bisavô?
Não, nunca.
É a cara chapada dele.
Pois, já ouvi dizer.
Mais de mil vezes, pensei.
Acredite que é verdade. Uma pessoa muito engraçada, o seu bisavô. Lá em Luanda, andava todo arranjado, com um chapéu colonial... Cheguei a ter alguns livros dele, nem sei o que lhes fiz. A certa altura encomendaram-lhe uma obra sobre o Paiva Couceiro. Acho que aquilo deve ter dado a volta à cabeça ao seu bisavô e ele começou a ficar parecido com o homem. Rapaz, estou-lhe a falar a sério. Deixou crescer um bigode e depois enrolou-o com todo o cuidado...
Calou-se e fez um esgar sério, como se a memória o tivesse atropelado e retomasse agora o comando das palavras para recordar calado.

O rio Congo tem o segundo maior caudal de todo o mundo, a seguir ao Amazonas. Numa manhã de Verão, o meu bisavô deixou a mulher e os filhos em casa e lançou-se com dois amigos numa viagem que tinha como destino a foz daquele rio. Quarenta dias mais tarde, acampavam na bacia do rio Congo quando o extravagante embigodado disse que ia dar uma volta até à hora de almoço. Foi a última vez que foi visto.
Um dos homens que participavam na expedição disse à minha bisavó, depois de um luto simbólico, que “tinha sido melhor para todos”. Em Angola surgiram rumores mistificados de uma tribo liderada por um velho português que habitava na bacia do Congo. Em Trás-os-Montes, onde o meu bisavô nascera quarenta anos antes, celebrou-se o poeta, recordou-se o historiador, bebeu-se vinho.

Estaria detido nesta memória quando o filho do Alberto apareceu e disse que tinha de ir pagar a gasolina. O meu telemóvel começou a piscar. Olhei para as roupas, os livros e uma casca de banana espalhados pelo banco de trás do meu carro. Patético, em três dias de fuga ainda não conseguira furar o perímetro da cidade. Pensei no meu bisavô na selva congolesa, uma réplica solitária de um militar nacionalista a definhar em silêncio. Pensei na M., que me ligava insistentemente. Pensei no Alberto, que entretanto estendia um maço de notas ao filho, em agradecimento por uma tarde longe de Benfica.

Pedro Pinho

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