quarta-feira, 10 de março de 2010

INOCÊNCIO, O BRAVO

EXERCÍCIO DAS 5 PALAVRAS OBRIGATÓRIAS

Sempre foi das figuras mais marcantes na minha família, sempre no comando das operações, parecia uma personagem saída dos contos fantásticos, mal comparado, um esforçado cruzamento entre o comandante Nemo das 20.000 léguas submarinas e o capitão Iglo - das nossas filetes para preguiçosos – só que menos banana. O avô Inocêncio era um homem forte, garboso, como se dizia à época, um metro e oitenta e sete de porte de almirantado, cabelo de afogo em brilhantina e bigodes enrolados em pontas verticais, a acabarem em antenas de onda curta.
A sua paixão sempre foi o mar, por isso foi para a marinha, sempre gostou de oceanos alterosos, sem solução para Moisés de cunha metida, nada de rios de saltar a pulo ou riachos de patos mansos e sapos escondidos de princesas chatas. Sempre amou a gravidade das situações, “o limite do humano perante a natureza”, como gostava de dizer. Teve mais embalo no mar do que ao colo da mãe – era um menino de rua - como também gostava de lembrar, a confirmar a veterania. De três vezes perdeu o confronto com as forças naturais, afundou dentro de três barcos cansados, mas sempre alcançou terra à custa de uns braços fortificados de tanto girar a roda do leme. De duas das vezes, salvou companheiros, trazendo-os na largueza das suas costas e da sua bondade. Da terceira só lá ficou o cozinheiro com os tachos e a suspeita por parte dos outros sobreviventes da intenção do meu avô Inocêncio o ter deixado propositadamente a “refogar” em redemoinhos até alcançar o fundo. Parece que não gostava da comida a bordo.
No dia em que foi obrigado à reforma por limite de idade, fez a última anotação no seu diário de bordo, a lápis de molhar na língua e letra trémula. “Perante a natureza, um êxtase incomunicável, comovente, e o som dos meus ossos a encolherem-me até ao tamanho de um nada…Vivi.”

A partir desse dia morreu. Deixou de falar, de comer por si próprio, de enrolar as antenas, e o cabelo acordava e adormecia num ninho de galhos desencontrados.

À hora das refeições a história do ”Olha o avião..! Vruuuummmm!”, para o obrigar a comer
- ele a olhar desconfiado a colher da papa em voo picado, pilotada por pedaços de
bróculos e rodelas de cenouras, envoltos num puré a sobrar da colher, a pingar rodas imaginárias para a aterragem

não surtia efeito se não se substituísse a aeronave por um barco, nem que fosse a remos

- “Olha o barquinho..!” - e autorização imediatamente concedida para entrar no porto.
Mas à medida que a senilidade envelhecia deixaram de servir simples navios, a minha avó percorria toda a frota e os legumes passadinhos só encontravam o buraco da boca à custa de corvetas, contratorpedeiros e, por fim, já só de um valente porta-aviões gentilmente cedido pela marinha norte americana. A minha avó sabia então que o Inocêncio, o bravo amazonas, estava a gastar-se. Não havia barco a seguir, em breve só o reboque farronco para o levar à doca seca.

Na manhã do dia em que morreu, estávamos só os dois na sala, ele depositado no canto do sofá, braço de um no outro, inerte a par com o candeeiro – só que a dar muito menos luz - e eu furiosamente no zapping, à procura de surf. Assim que encontrei, depois de duas ondas valentemente dominadas por hawaiianos escorreitos, que o Inocêncio viu de olhos arregalados e pose recuperada, o meu avô levantou-se do sofá, abriu os braços em cima, em saca-rolhas moderno, chorou duas lágrimas, uma de cada lado da cara para se equilibrar, e proferiu as sua palavras finais:

- Obrigado, Pai, obrigado!

E finou-se desajeitadamente de volta ao sofá, ferramenta de volta à caixa.
Como se agradecesse uma promessa, uma dádiva a receber, uma carta de um filho que afinal não morreu na guerra, da mulher gorda que cala o berreiro no fim da ópera.

Não percebi até ao momento de o levar como adubo, mas no enterro, no momento em que a urna descia em direcção ao centro da terra, passou-me uma ideia, uma iluminação pela cabeça. O garboso do Inocêncio iria reencarnar rapidamente, desta vez na pele de um surfista, o safado! Por isso agradecia aos céus, a mulher gorda não pertencia à equação. Soltei uma gargalhada razoável no meio das duzentas pessoas que acompanhavam o baixar do velho lobo-do-mar.

O padre olhou-me de lado, já não me fala quando me vê na rua e a minha família nunca me perdoou, deixou de me convidar para enterros.

Ricardo Vieira

Sem comentários:

Enviar um comentário